sexta-feira, 28 de novembro de 2008

20 anos do SUS

O Centro Brasileiro de Estudos em Saúde - CEBES - produziu um documento, aproveitando o aniversário de 20 anos da criação do Sistema Único de Saúde, apontando as insuficiências e debilidades do SUS ainda não corrigidas e superadas, e dando um pontapé inicial na necessária reflexão e mobilização pela garantia do pleno direito à saúde e à vida. Reproduzimos aqui o documento do CEBES.



20 ANOS DO SUS - CELEBRAR O CONQUISTADO. REPUDIAR O INACEITÁVEL.

Nos 20 anos da Constituição Brasileira e do Sistema Único de Saúde - SUS, o Cebes celebra a grande conquista da sociedade brasileira, que mudou a história da política social no país ao instituir a saúde como direito de todos os cidadãos, sem distinção de qualquer natureza, e como dever do Estado.

Nessas duas décadas, profissionais, gestores, movimentos sociais, serviços e a população vêm travando uma dura batalha para fazer com que esse direito seja concreto, contínuo e seguro.

O SUS mudou de forma radical a configuração da atenção à saúde no Brasil. É, sem dúvida, uma das políticas sociais mais abrangentes e distributivas da história nacional, ao tornar o acesso universal e incluir milhões de brasileiros na condição de usuários de saúde.

Com o SUS criou-se um sistema nacional e único, abrangendo todas as áreas relativas ao cuidado em saúde. O SUS reordenou a prestação de serviços, criando uma complexa e ousada estrutura onde união, estados e municípios trabalham em conjunto. Criou e expandiu instâncias de pactuação e participação social inéditas na história do país.

O SUS aumentou a rede de serviços públicos; criou e implementou inúmeros programas de atenção e promoção avançados e abrangentes. A população conhece e usa o SUS todos os dias, seja direta ou indiretamente. Os números do SUS impressionam, demonstram a potência desse jovem sistema e confirmam a importância da instituição do direito à saúde na Constituição.

O SUS é mais que um sistema de saúde. Ele faz parte do pacto social presente na Constituição de 1988, que visa a construir uma sociedade democrática e solidária. Por isso foi inscrito na seguridade social; para, junto com assistência social e previdência, garantir proteção social em condições de igualdade a todos os cidadãos, através de políticas eqüitativas e sistemas universais, públicos e financiados por toda a sociedade.

Esses são preceitos que valorizam a vida, a dignidade e o direito ao futuro como bens inalienáveis de todos. Não há paz e desenvolvimento onde a vida é um valor menor, onde a saúde é considerada uma mercadoria, que mais terá quem mais puder pagar. Não há justiça social onde a atenção à saúde dependa da capacidade e do esforço individual de cada um. Não há futuro para uma sociedade sem bens coletivos sólidos e perenes.

Os governos têm continuamente adiado sua integral responsabilidade com a seguridade social e o SUS, restringindo financiamento, recursos humanos, permitindo a expansão do setor privado em áreas estritamente públicas e sendo permissivo com práticas clientelistas e patrimonialistas.

Em 20 anos de SUS, a saúde tem sido negligenciada em prol de uma de política econômica restritiva e de acordos políticos particularistas. Esse não é o projeto dos brasileiros. O projeto dos brasileiros é que se cumpra a Constituição. E aos governos cabe não somente ‘respeitá-la’; eles têm a obrigação de implementá-la.

E é exatamente o reconhecimento a todos os avanços do SUS que faz com que o Cebes, neste momento de justa celebração, venha registrar sua indignação com a permanência de um conjunto de problemas que atinge de forma cruel a população e ameaça os princípios conquistados.

Nossa indignação faz com que venhamos registrar o que consideramos inaceitável no SUS hoje.

Inaceitável porque ultrapassa os limites do respeito à dignidade humana. Inaceitável porque fere os direitos da cidadania e da democracia. Inaceitável porque corrompe os princípios do que é público, bem de todos, e não pode ser usado em favor de alguns. Inaceitável porque conhecemos as soluções e porque dominamos as condições necessárias para implementá-las.

A sociedade brasileira investiu trabalho e esperanças na construção de um SUS para todos. É inaceitável que governos e gestores, representantes do Estado responsáveis pelo SUS, deixem de cumprir suas diretrizes elementares. Não podemos mais esconder ou justificar as tragédias cotidianas que afligem a população e que podem ser resolvidas já.

O SUS é um projeto nacional, solidário, justo e, acima de tudo, possível.

Por isso consideramos INACEITÁVEL, passados 20 anos:

1 Que ainda não exista uma fonte estável para o financiamento do SUS.

2 Que o gasto público em saúde ainda seja de menos de 1 real por habitante/dia, muito aquém de países menos ricos na América Latina.

3 Que permaneçam as condições precárias de atendimento nos serviços do SUS. O SUS pode e deve prestar serviços dignos aos cidadãos. A população tem direito a saber em que condições será atendida, quanto tempo tardará o atendimento e como proceder em caso de expectativas não cumpridas.

4 Que serviços do SUS ainda não funcionem como uma rede integrada, com porta de entrada única, deixando ao usuário a responsabilidade de buscar por conta própria os serviços de que necessita.

5 Que ainda não tenham sido implementados, em todo o território nacional, mecanismos elementares de gestão de filas que eliminem o sofrimento diário dos usuários.

6 Que na reorganização da atenção seja dada prioridade às UPAs e AMAs, modelo ultrapassado e imediatista de instalação focada de unidades, e que a atenção básica não seja até hoje o eixo estruturante de todo o sistema.

7 Que ainda não tenha sido implantado o cartão SUS, com informações seguras sobre o histórico de cuidados dos usuários, fonte de planejamento, transparência e combate à corrupção.

8 Que a população não tenha ainda acesso seguro e regular aos medicamentos e exames vinculados ao ato terapêutico.

9 Que serviços do SUS ainda hoje não garantam às mulheres grávidas a referência segura de onde vão parir.

10 Que se mantenham discriminações de classe social, gênero, orientação sexual e raça em serviços do SUS.

11 Que serviços e profissionais de saúde continuem maltratando as mulheres que fazem aborto, com negligência no atendimento, ajuizamento moral, denúncias e outras formas de violação de direitos.

12 Que serviços desautorizados pela vigilância sanitária continuem funcionando.

13 Que hospitais lucrativos continuem sendo considerados como filantrópicos e recebendo subsídios públicos.

14 Que se mantenha a dupla porta de entrada nos hospitais públicos e contratados.

15 Que os profissionais de saúde sejam desvalorizados, tenham suas condições de trabalho e salariais aviltadas.

16 Que o SUS permaneça sem uma política nacional de formação e capacitação de recursos humanos.

17 Que, a título de redução do gasto público, se mantenha a farsa dos vínculos precários de trabalho, dependendo de convênios e contratos temporários.

18 Que profissionais usem a precariedade das condições de trabalho como justificativa para ausências e não cumprimento de horários.

19 Que o SUS continue sendo usado como moeda política. É preciso criminalizar o uso político de cargos de direção e dos setores de compras de hospitais do SUS, que estimulam a corrupção, drenam recursos e comprometem a qualidade dos serviços.

20 Que se mantenham transferências e subsídios do setor público para o setor privado de planos e seguros, através da compra de planos para funcionários públicos e da dedução do pagamento de planos no imposto de renda. É injusto que o conjunto da população financie o acesso diferenciado das camadas médias e a sobrevivência e crescimento do setor privado.

21 Que o SUS ainda não estabeleça metas e responsabilidades sanitárias claras a serem cumpridas pelos gestores e governos.

22 Que ainda não haja mecanismos legais de responsabilização de governos e gestores pelos serviços não cumpridos. Essa ausência estimula e encobre a alarmante corrupção no setor.

23 Que as transferências financeiras intergovernamentais ainda sejam feitas de forma verticalizada, em “caixinhas”, engessando o planejamento e a lógica sanitária.

24 Que as políticas sociais sejam ainda hoje, e cada vez mais, fragmentadas e setorializadas. É urgente o estabelecimento de políticas que integrem as distintas áreas sociais, para garantir os direitos instituídos no título VIII da Constituição.

25 Que o país ainda careça de uma política saudável para o meio ambiente, que afaste os riscos do cultivo de transgênicos, do abuso de agrotóxicos, da poluição dos mananciais, do desflorestamento, e também de uma política que assegure condições saudáveis de trabalho no campo e nas indústrias.

26 Que governo e sociedade se recusem a discutir o aborto que praticamos, o consumo de álcool que nos vitima, os acidentes de trabalho que nos aleijam.

27 Que se ignore a importância do complexo produtivo da saúde como forma de afirmação da soberania nacional, como combate á subordinação da produção industrial à lógica de preservação de patentes e domínios de conhecimento, como possibilidade de associar o desenvolvimento industrial à política de proteção social, gerando um exemplar modelo de desenvolvimento nacional.

28 Que não se efetive a concepção de Seguridade Social prevista na Constituição de 88, como condição imprescindível para a coesão social. Essa efetivação passa hoje pela convocação da Conferência Nacional de Seguridade Social.

Transformar o direito à saúde em direito em exercício é dever do Estado e não pode mais ser retardado, sob alegações de qualquer ordem.

Não existe valor superior à vida, muito menos aqueles propugnados pelos defensores de políticas voltadas para o pagamento de juros e produção de superávits fiscais que restringem o investimento social inadiável.

O Cebes conclama a todos a celebrar nossas conquistas, refletir sobre os impasses e desafios e não transigir com o que é inaceitável. Depois de 20 anos, já temos condições de exigir a sua superação imediata!